Sob a luz mortiça de velas em uma terra desconhecida, eu, Axios Augustus Honoris, relato a seguir os
eventos deste dia.
Careço da métrica e da prosa de Leaf, meu novo amigo bardo, mas preciso registrar os ocorridos de hoje.
Escrevo, pois, um relatório acerca desta etapa de minha viagem a uma terra terrivelmente confusa e, como
vim a descobrir, tão alheia às pradarias do glorioso Império de Tauron que me são tão familiares.
No despertar de Azgher — ou seja lá qual o nome pagão que dão nestas terras ao deus Sol —, alcançamos
a vila de Cáli. Na entrada, encontrei um mestre anão bastante solícito. Era um mercador, acompanhado por
dois guarda-costas: um humano e uma elfa, filha de Glór... Não, não filha de Glórien. Não nestas terras
perdidas para os olhos dos deuses!
O mestre anão impressionou-me com sua força e simpatia, logo nos indicando para o local que motivava
nossa pressa. Explicamos-lhe que havíamos alcançado a cidade com celeridade para alertar o sacerdote de
um dos deuses desta terra, e assim fomos direcionados a um templo. Lá chegando, encontramos o homem
que pareceu confuso e assustado com minha aproximação. Quis tranquilizá-lo, assumindo a pose respeitosa
que um legionário deve ter para com entes do clero, mas eis que o incauto civil perguntou se, ao se dirigir
a mim, deveria chamar-me de homem. Achei-o deveras ousado em sua afronta e indaguei-lhe com que
poder desafiava minha hombridade. Mal sabia eu que o motivo era mais sombrio... A verdade é que, para
aquele homem, eu era uma criatura desconhecida e impressionante, inexistente naquelas terras. A seus olhos
e de tantos outros, eu carregava o semblante ameaçador de uma besta ignorante, um ser de força e carente
da lógica destilada por anos de estudo. Eu, membro de uma legião, um corpo único composto por
inumeráveis espíritos vivazes e obedientes, era um soldado isolado, abandonado à solidão, confundido por
muitos com um ruminante humanoide agressivo, um monstro, pois, como vim a saber logo em seguida, eu
estava longe de minha casa.
Sem me abalar com o desentendimento, ingressei em diálogo com o sacerdote, no que me seguiram meus
companheiros, com a exceção de Leaf, que se dirigira a uma taverna no intento de declamar seus escritos e
derramar seus vinhos goela abaixo certamente. Leaf é um bom homem, um elfo bastante confiante, mas
sempre dotado de um olhar confuso quando com ele converso, além de possuir o estranho hábito de ferir
com palavras os nossos inimigos. Parece-me desonroso não recorrer à força bruta como me foi ensinado,
mas talvez essa seja só uma outra qualidade de vigor, afetando os inimigos em seu espírito e em sua
sanidade mental. Espero apenas que não enfrentemos estoicos, aptos a absorverem os maiores vitupérios
sem titubear. Mas estou divagando.
Em nossa conversa com o sacerdote, soube, enfim, o motivo dos olhares confusos de meu amigo bardo e
das constantes repreensões que recebia daqueles com quem interagíamos quando eu mencionava parcelas
do meu conhecimento sobre geografia, história e religião: não estou em Arton. Malditos sejam Nimb e seus
dados descoordenados, e ainda mais malditos sejam Aharadak e tudo o que é lefeu! Em uma jogada
desenhada pelo Caos em conluio, certamente, com as tempestades rubras da Tormenta, fui enviado a outro
mundo, afastado de meus deveres, de meu povo, de Tapista, meu reino, meu amado reino... Como quis
chorar ao saber de tamanha desventura que me sufocava! Mas contive a força de minha saudade com o
vigor de meu orgulho e decidi-me, por fim, que é meu dever manter-me firme no propósito de voltar à
minha terra e reassumir a minha missão, seja ela qual for — as sombras turvas do esquecimento ainda
obnubilam minha memória desde que surgi neste mundo desconhecido. Talvez seja fruto, inclusive, da
natureza deste lugar afastado dos verdadeiros deuses onde me encontro: consoante afirmado pelo sacerdote,
este é um Entremundos, um local de encruzilhada entre vários mundos. Assim, se Arton toca este lugar, é
porque para lá posso retornar! Mas o como ainda me é tão incerto...
Seja como for, meus deveres de justiça, minha homenagem distante a Khalmyr, precisam ser observados
também à distância. Sei que o líder do Panteão de Arton me observa, mesmo à distância, mesmo nestas
terras veladas aos olhos dos verdadeiros deuses, porque é justo que ele saiba que não vacilei no
cumprimento de meu dever, mas, pelo contrário, fui involuntariamente jogado ao caos do desconhecido.
Seja como for, por razão de justiça e em busca de restaurar a ordem, devo impô-la, seja onde for, assim
como é devido. Foi desse modo que meu grupo e eu decidimos aceitar o pedido do sacerdote para que
fôssemos ao cemitério do vilarejo, onde mortos-vivos assolavam a paz dos vivos e dos mortos. De início,
não quis aceitar paga pelo serviço, afinal a distribuição da justiça já é o quinhão devido àquele que é justo.
Mas Kaz, meu inusitado amigo orc, fissurado em agarrar-se a um taco que ele insiste em fazer crescer
sempre que encontramos inimigos, lembrou-me de que o dinheiro desta terra pode ser um meio de
adquirirmos nossa passagem de retorno a nossas vidas e, principalmente, aos nossos deveres. Aceitamos,
portanto, ser pagos pelo feito.
Na saída da cidade, com destino ao cemitério, conhecemos o ferreiro local. Bastante esmerado é o seu
trabalho, e a sinfonia de suas marteladas lembrou-me as forjas ordenadas que temos no Império. Ó Tapista...
Por que estamos tão distantes? Infelizmente, somente a nostalgia foi o que me restou recolher na sua oficina:
com os poucos Tibares... corrijo-me: com o pouco dinheiro desta terra que temos, sequer poderíamos
melhorar nossos equipamentos. Assim, seguimos como estávamos para a batalha, preparados apenas com
o coração firme e com a robustez concreta de termos uma missão a ser cumprida. Leaf, porém, parecia
avoado. Quedava-se ainda em declamações entremeadas por soluços de vinho na taverna. Ri um pouco de
sua situação cômica de boêmio dedicado, o que aliviou o peso que senti diante dos novos conhecimentos,
de minha desventura geográfica atual. Ele é um bom companheiro, assim como o são Kaz, Valna e Catarina.
Talvez não seja de todo ruim o resultado dos dados de Nimb...
Chegamos, enfim, ao cemitério e planejamos cuidadosamente nosso ataque. Que desventura ver que minha
mente, perturbada nestas plagas desconhecidas, abraça a ignorância da parca estratégia. Tão
cuidadosamente pensei em planejar algo que me demorei em demasia e executamos apenas o rascunho de
um plano de batalha. Vergonha para as legiões teria sido a minha derrota, mas felizmente a força — sempre
a força! — minha e de meus companheiros foi bastante para atingirmos nosso propósito. Mas isso não se
deu sem o risco de sacrifícios! Não havíamos nem mesmo ingressado em combate, Catarina já corria risco
de morte diante de um zumbi fétido que a atacava, muito longe de onde estávamos Valna e eu, deixando a
responsabilidade de proteger nossa arcanista nas mãos, no taco e nas bolas de nosso amigo orc. Felizmente,
apesar dos ataques sofridos, Catarina é uma feiticeira chocante — peço desculpas pelo trocadilho no relato,
mas tenho passado muito tempo com Leaf, então certo desvio da sobriedade usual de meus relatórios era
esperado — e o taco enrijecido e aumentado de Kaz, bem como suas bolas mágicas, provou-se uma arma
volumosa contra os adversários. Ao mesmo tempo, a pontaria certeira de Valna e seus milagres de impacto
e fogo foram peças vitais em nossa vitória. Unidos, conquistamos o desafio. Ou ao menos o que havíamos
visto dele até o momento.
Com os inimigos mortos (de novo), passamos ao escrutínio dos mausoléus e tumbas. Encontramos alguns
bens que, não obstante eu acreditasse de início que deveriam ser deixados como lembranças e espólios dos
mortos, seriam mais úteis conosco, um grupo de aventureiros em busca do caminho de casa. Ademais, que
mal deve haver em ofender deuses que sequer sabem de nossa existência, neste entremundos perdido?
Adentrávamos cada um dos cômodos de descanso eterno profanados pela necromancia que ressuscitara
nossos adversários até que, ao final, encontramos uma criatura até então desconhecida para mim: era um
espectro. A besta nebulosa parecia tocar um alaúde fantasmagórico quando a encontramos, mas logo
mostrou toda a sua virulência ao nos atacar sem provocação. Por certo, meus companheiros estavam muito
mais bem preparados para aquele embate do que eu. Valna proclamava seus milagres em ataques à criatura,
Catarina enviava faixas luminosas com seus raios contra a imundície etérea, e Kaz, mais uma vez alisando
magicamente seu taco para deixá-lo inchado e rijo, atingia a fera com pauladas impiedosas. O aço de meu
machado, porém, apenas atravessava a criatura sem qualquer efeito... Nisso, Kaz teve uma ideia brilhante:
estendendo na minha direção o saco com suas bolas mágicas, ao mesmo tempo que balançava ferozmente
seu taco gigante contra o espectro, disse-me que segurasse uma de suas bolas e usasse-a para ferir nosso
adversário — “Minhas bolas são mágicas! A criatura não suporta magia!”, ele disse. “Sim”, pensei comigo,
“Definitivamente a criatura não será capaz de lidar com as bolas que vou esfregar em sua face plasmática!”;
e foi o que fiz.
Segurando com toda a minha força a bola mágica de Kaz, desferi golpes na face da criatura. O espectro,
então, ora recebia o calor vigoroso das mãos quentes de Valna, ora sentia as fagulhas chocantes dos toques
pungentes dos dedos de Catarina, ora tomava o impacto massivo do taco imenso de Kaz, ora engolia as
bolas mágicas de Kaz que eu segurava e enfiava ectoplasma abaixo no inimigo. Podíamos ver a besta etérea
se enfraquecendo à medida que a atacávamos e não foi surpresa para nenhum de nós que o taco mágico
lustroso de Kaz tenha sido o último impacto sentido pela criatura antes de ela se desfazer em inexistência.
Aquela, enfim, a vitória, nosso êxtase.
Recolhemos os espólios do ataque e retornamos à cidade, onde o sacerdote nos agradeceu pelo feito e nos
recompensou com uma pedra de poder. Talvez sejam como as bolas de Kaz. Catarina falou que ficaria com
ela, mas pode ser que essa nova bola mágica, a bola do sacerdote, tenha mais uso nas mãos de Valna ou
Leaf. Veremos.